Há discussão na comunidade geológica acerca do início do período do que chamamos de antropoceno. No entanto, para fins de análise do impacto da produção de cidades parece mais apropriado considerar que a “grande aceleração” (VEIGA, 2019) da segunda metade do século XX foi o que moveu verdadeiramente adiante a posição humana no planeta rumo a um par de desequilíbrio com a natureza. Se “a nova universalidade consiste em sentir que o solo está em vias de ceder… o rumo é o de reconstruir as bordas, os invólucros, as proteções” (LATOUR, 2017).
A fim de equalizar as discrepâncias presentes nos traços do homem sobre seu habitat, entende-se que deve ser aprofundada a reflexão dos registros ecológicos do meio ambiente, das relações sociais e da subjetividade humana (GUATTARI, 1989). Alterando o panorama físico, o componente anímico das sociedades poderá produzir subjetividades que ultrapassem os problemas de natureza ecológica e técnica em que os combustíveis fósseis e o extrativismo puseram a humanidade. Como propõe Umberto Eco, “temos que pensar em outro mundo pois apenas imaginando outros mundos é que acabamos por mudar este nosso”. (2001)
Num contexto de graves crises socioeconômicas, fica evidente a necessidade de um olhar para os sistemas humanos de organização buscando resposta mais igualitária para uma miríade de conflitos complexos. A partir das ideias de pós-extrativismo ou decrescimento de Umberto Acosta e Ulrich Brand, propõe-se de partida então que para uma perspectiva de transformação socioecológica os conceitos de desenvolvimento e crescimento sejam revistos para se adequarem a um “extrativismo sensato” (ACOSTA, 2018) que freie a “máquina de moer mundo” (KRENAK, 2019) da cadeia produtiva do presente.
O propósito desde trabalho é, portanto, a investigação acerca da capacidade de organizar um modelo de intervenção física em infraestruturas urbanas e identificar pontos permitam reimaginar uma paisagem produtiva na relação das infraestruturas metropolitanas com a natureza.
Como resultado da investigação e mapeamento das potencialidades do território e das formas de agir sobre o problema socioambiental chegou-se na hipótese da apropriação gradativa, de forma parasitária, das infraestruturas existentes para propor pontos de atração local. Mobilidade, economia circular, habitação, regularização fundiária e preservação da fauna, flora e cursos d’água são temas que tangenciam de muitos ângulos os problemas encontrados no bairro Arquipélago e quando abordados produzem abundância de resultados particulares, que aqui serão abordados.
“O la muerte o la simbiosis”
Michel Serres, El contracto Natural
Através dos últimos séculos o ser humano e a natureza mudaram radicalmente sua forma de se relacionar entre si. O que chamamos de antropoceno pode ser descrito como a era da indissociabilidade entre essas duas forças, ainda que cada vez mais elas se contraponham. A materialização contemporânea do medo do fim do mundo parece ter substituído o fim da história de Fukuyama (1992) para dar rumo as lutas sociais remanescentes dos séculos anteriores, agora sob uma ótica também de processos naturais. A mudança climática e a ansiedade por ela provocada são as autoridades que movem uma geração rumo a uma nova forma de habitar o planeta, forma essa ainda não completamente desenhada e muito menos absorvida por autoridades globais.
Este processo é especialmente sentido no sul global. A terceirização de produções e o extrativismo desenfreado ligado ao capital internacional contribuem para que os efeitos climáticos do antropoceno e da produção fordista do mundo sejam mais presentes em alguns lugares do que em outros até então. A produção de cidades ligadas a infraestruturas extrativistas neste continente é desde o século XX a forma urbana do progresso capitalista, que depende de cisões no tecido natural.
Na América do sul, dos territórios de maior biodiversidade do planeta, saem as notícias que denotam maior impacto da produção do mundo através do extrativismo. No entanto, há uma efervescência na produção cultural e na biodiversidade destes países que pode dar norte para uma solução de prosperidade atrelada a conceitos de Bem Viver (ACOSTA, 2018). Neste contexto, em que matéria plástica é despejada nos oceanos para eventualmente se torna o microplástico encontrado no organismo de diversas espécies animais e a poluição é parte intrínseca do processo de desenvolvimento econômico, parte da solução parece residir na proteção ambiental das águas e em uma saída viável da produção de plásticos e combustíveis fósseis. No mesmo campo, em sua face oposta, a biotecnologia pode prosperar com os insumos de ecossistemas latino-americanos para o desenvolvimento de Bioplásticos, redesenhando assim uma parte do panorama do extrativismo mundial e das conexões entre o natural e o artificial.
A identificação destes problemas e oportunidades levanta a questão: Como levar o novo pacto antrópico natural (entre territórios sensíveis e infraestruturas do antropoceno) ao âmbito da arquitetura e do urbanismo através de infraestruturas ecológicas?
O Brasil mais especificamente possui notável riqueza hídrica, articulando em seu território ecossistemas complexos de toda américa latina. Neste contexto, o projeto no Arquipélago retrata um cenário pontual de infraestruturas intimamente ligadas a paisagem na região do Pampa, servindo também como projeto piloto passível de reprodução sistêmica em contextos semelhantes, e levanta a complexidade do tratamento de sedimentos do antropoceno atrelados a preservação ambiental e a participação social no bairro, no delta do rio Jacuí, importante fornecedor de recursos para a região de Porto Alegre e principal rio da bacia do Jacuí.
Surge então o trabalho de delimitar as formas de intervir na paisagem, de parasitar infraestruturas lineares do extrativismo propondo uma nova ótica de desenvolvimento econômico dentro de uma lógica de arquitetura latino-americana conservacionista e sobretudo de produzir um discurso ecológico coerente entre espécies. Parece premente restabelecer a ordem natural entre natureza e ser humano que existe dentre os povos originários latino-americanos, agora de uma forma necessariamente orientada a conduzir melhorias de vida a populações desamparadas pela desigualdade climática. Além disso, o trabalho se propõe a expandir os ideais do que se pode fazer nos cinturões de “cidade porvir” (GANDY, 2022) para conter os avanços da “não cidade”, do extrativismo e das mudanças climáticas que desarticulam formas de viver dos povos originários e de grupos segregados da sociedade de consumo e dos centros urbanos. Em suma, a questão: É possível propor nova forma de habitar, se manifestar física e simbolicamente dentro de um espaço seguro para a “primeira natureza”, cooptar infraestruturas a favor de uma natureza produtiva não-predatória? Neste trabalho, portanto, a fim de mediar o pacto antrópico-natural, propõe-se um centro de reciclagem e pesquisa em bioplástico que serve como instrumento de investigação para alterar a práxis em regiões ambientalmente sensíveis. A proposta de um espaço público e semipúblico que congregue a comunidade e faça com que a natureza e o humano penetrem nas infraestruturas urbanas parece ter sido a tônica da arquitetura Latino-Americana do século XX e merece reinterpretação sob ótica atual. O edifício é concebido como um dispositivo que propõe esmaecer a linha entre o natural e o artificial. De forma simbiótica, o dispositivo arquitetônico pretende afinar a associação estabelecida entre seres de espécies diferentes (natureza e sociedade, rural e urbano, energia de combustíveis fósseis e energia renovável), bem como fomentar uma economia circular latente através do ensino e prototipagem de produtos feitos a partir de matérias-primas recicladas, pesquisa e desenvolvimento de tecnologias e biomateriais e eventos na comunidade, articulando em si a mobilidade local.
Para essa investigação a pesquisa é dividida em três partes nas quais igualmente se aborda os temas do território e seu contexto natural e urbano; a matéria, forma física de articulação, e suas potencialidades e por fim a ecologia ou ecologias, formas de intervir a obter um balanço entre o ecossistema e a “tecnosfera” (GANDY, 2022) parasitando as estruturas de mobilidade e estabelecendo um ritmo metabólico entre subprodutos do antropoceno e biodiversidade.
TERRITÓRIO
“Em visita a Daca, Jeremy Seabrook descreve uma pequena favela – um refúgio para gente desalojada por erosão, ciclones, cheias, fome ou aquele gerador de insegurança mais recente, o desenvolvimento.”
Mike Davis, Planeta favela
O bairro, formado por um conjunto de 16 ilhas, se localiza exatamente no nó rodoviário entre a BR116 e a BR290, conferindo ao local um caráter de possível escoamento de produção assim como visibilidade turística e ecológica. Neste nó se dá a dinâmica fundamental do projeto: a contraposição entre a ecologia da bacia do rio Jacuí que deságua no oceano e o cruzamento de rodovias que cortam o país como infraestrutura industrial.
A história das ilhas, desde seu primeiro assentamento Indígena, retrata um pouco do modelo de urbanização Brasileiro. A ocupação humana remonta do século XVI no arquipélago (PESSOA, 2014), quando povos Guaranis ocupavam a área. Após a construção da ponte que liga as ilhas a cidade em 1950 houve um grande crescimento populacional e as ilhas passaram a ser ocupadas majoritariamente por pescadores. Há também registros da presença de povos quilombolas no arquipélago desde o século XIX.
O declínio econômico e ambiental das últimas décadas retrata a relação simultânea de segregação socioespacial e degradação do meio ambiente sofrida pelos habitantes do bairro. Em sua maioria os moradores atuais dependem economicamente da coleta de material reciclável, realizada em centros de triagem ou nos quintais das casas, a céu aberto. A maior reivindicação dos moradores do arquipélago é infraestrutura básica nas ruas, nos espaços públicos. A segurança ambiental, assim como iluminação e infraestrutura nos espaços públicos, consciência ambiental e oportunidade de trabalho são as principais demandas da população.
“O trânsito é espaço-lixo… todo sistema de auto-estradas é espaço-lixo, uma ampla utopia em potência obstruída por seus utilizadores…” argumenta Koolhaas em Junkspace (2014). A visão de que as infraestruturas mecanizadas e utilitárias do antropoceno se converteram em não-lugares no século XX é útil para articular a retomada deste espaço-lixo. Em sua crítica a economia geradora do espaço-lixo, a transformação do espaço em bio-lixo e sua denúncia das eco-reservas que dão carta branca para maior poluição (KOOLHAAS, 2014) o autor entra em consenso com teorias como a do decrescimento, que entende que só é possível articular verdadeira mudança ecológica com profunda mudança de paradigma no modelo econômico. Do ponto de vista urbano, parece ser possível em escalas locais, com projetos de gestão comunitária, apontar para o fim da genealogia do desastre.
MATÉRIA
Ao passo que a ecologia deve obviamente ser observada pelo lado da técnica, paradoxalmente Jane Bennett argumenta que é necessário dissipar a dicotomia entre vida e matéria (BENNETT, 2010). Quer dizer, partindo do pressuposto de que toda matéria possui certa “carga vital”, pode-se apreender que a matéria é capaz de subjetivar o indivíduo e comunidades.
Serres argumenta que:
“Si existe uma polución material, técnica y industrial que expone el tempo, em el sentido de la lluvia y del viento, a riesgos concebibles, también existe uma segunda, invisible, que pone el peligro el tempo que passa y transcure, polución cultural que hemos infligido a los pensamentos largos, esos guardianes de la tierra, de los hombres y de las cosas mismas. Sin luchar contra la segunda, fracassaremos em el combate contra la primera. ¿Quién duda hoy de la naturaleza cultural de eso que se llamó infraestructura?
De uma perspectiva materialista, ao sentenciar que “não existe coletivo humano sem coisas, as relações dos homens passam pelas coisas” (SERRES, 1991) serres se coloca fundamentalmente a favor de uma fenomenologia híbrida entre o mundo físico e suas necessidades latentes e as dimensões subjetivas da existência. É na quebra desta dicotomia que se pode avançar rumo a uma profecia autorrealizável (FISHER, 2018) que foge dos paradigmas ambientais que conhecemos de dentro dos modelos econômicos empregados nos últimos séculos, inexoravelmente afetando a arquitetura. Neste panorama Bennett buscou desenhar uma ontologia da matéria vibrante (2010), ou seja, formas mais ecológicas de organização cultural e econômica através da fenomenologia do mundo físico.
Segundo a geógrafa Natalie Blanc, “a estética da natureza deriva de uma sensibilidade compartilhada… uma estética da natureza é inerentemente política” (GANDY, 2022). Na dimensão dos espaços de “natureza marginal” a estética pode cair a um segundo plano enquanto os sentidos de imersão na natureza predominam na experiência humana. Neste sentido, de estética política, se faz necessária não somente a participação da comunidade local na implementação do projeto como também sua participação perene. Imagina-se para tanto a instalação de dispositivos de participação voluntária no que diz respeito aos anseios da comunidade, já que se propõe um edifício permeado por espaços públicos. Espera-se que haja com isso a possibilidade de uma autogestão eficiente dos programas públicos do espaço, por uma visão comunal e de democracia direta. Objetivamente se quer dizer: controle da própria comunidade local sobre programas públicos de workshops, salas de aula, fabricação e pesquisa, ainda que estes sejam ministrados e coordenados por entidades externas (universidades por exemplo).
Quanto a matéria propriamente dita, o estado físico dos objetos empregados aqui, se deve ater ao escopo da sustentabilidade. Plásticos reciclados e madeira dão a tônica de uma arquitetura em consonância com as possibilidades atuais do mundo físico, além de conferirem riqueza tátil e logística simples na construção. A tradição do concreto e aço do modernismo deve dar espaço a fluidez e captação de carbono da madeira. Neste sentido também se busca uma relação, ainda que insipiente, com as culturas tradicionais, cuja arquitetura também está relacionada ao conhecimento tátil (PALLASMAA, 2011). Pallasmaa argumenta que uma “cidade sensorial” é uma “cidade da participação”, reforçando a aptidão democrática dos espaços públicos através do elemento corpóreo. Isto condensado quer dizer decisivamente que a inserção de projeto com caráter cultural e de transformação material objetiva tem capacidade por si só de alterar a experiência de realidade local. O edifício passa a ser entendido como sistema de filtragem da realidade ao longo do tempo, não apenas peça de especulação.
ECOLOGIA
A infraestrutura viária que cria uma promenade automobilista por dentro do parque estadual do delta do Jacuí, área de proteção ambiental criada em 1979, também divide agressivamente o território em duas seções, se impondo como barreira física e dificultando a criação de centralidades no bairro. A inserção de uma peça arquitetônica, de qualquer escala, num território tão sensível parece ser o grande desafio latino-americano após a modernidade.
Imaginar todas as escalas e subordiná-las a uma compreensão da arquitetura local, mergulhar no território para pensar numa estética para além dos cânones da arquitetura, mas sim na geografia, e propor uma relação entre paisagem e infraestruturas parecem ser as táticas regionais adequadas. A escassez que orienta a produção no continente está aqui presente e orienta a concepção de um arquipélago linear que se adapta flexivelmente às mudanças ecossistêmicas e sociais a que o seu território está acostumado.
Entendendo que a arquitetura precisa mediar nossa relação com nosso passado biocultural (PALLASMAA, 2017), é apropriado adequar a postura material de projetos multiescalares ao resgate de tradições, ainda que esta forma de atuar culmine em procedimentos tecnológicos inovadores. Aliar pontos de carregamento de transporte urbano elétrico com conhecimentos ancestrais sobre conforto térmico, construção em madeira e preservação por exemplo, passa a ser modus operandi de uma arquitetura híbrida na forma e no tempo.
Para costurar as diversas escalas desta intervenção é necessário ter em vista o poder de obras como Double Negative de Michael Heizer, que coloca em foco a força da dimensão da interação entre homem e natureza, e Plastic Mantra de Eulalia Valldosera, que em escala menor da conta de ativar a percepção dos sentidos quanto ao distanciamento do mundo puramente natural. Enquanto pode-se dizer que a arte e a land art atuam na combinação das ecologias do meio ambiente e da subjetividade humana, cabe a arquitetura incluir procedimentos que dizem respeito a ecologia das relações sociais, e uma articulação ético-política (GUATTARI, 1989) somente pode ser realizada tocando os três termos. Quer dizer, corresponde a estrutura física, simbiótica, híbrida, posicionada em pontos dispersos ao longo da BR116, a tentativa de cultivar a diversidade na produção singular de existência.
Ao se manifestar enquanto peça inseparável da infraestrutura o edifício (ou estruturas adjacentes) apresenta caráter simbiótico. É neste contexto que se espera parasitar infraestruturas já em via de obsolescência com uma proposta radical de ressignificá-las. Adota-se o ideal de propostas com o High Line Park de Nova York ou o Mumbai Green Mile (MVRDV) de transformar espaços negligenciados em estruturas de fruição da vida urbana, se propõe um habitáculo dos serviços urbanos relacionados ao público, em volta de um programa de educação ecológica e produção industrial. No entanto, diferentemente dos projetos citados, há a presença de fortes componentes de sensibilidade socioambiental. A poluição do rio Jacuí e a necessidade de regularização fundiária e acesso a infraestrutura de espaços públicos da população posicionada entre as margens da BR116 e da APA (Área de Proteção Ambiental) eleva o caráter do projeto a outro nível de complexidade.
“A maior parte dos objetos que nos rodeiam, incluindo a nós mesmos, encontram-se nesta situação intermediária: são naturais e culturais ao mesmo tempo” (DESCOLA, 2016). Ao entender as infraestruturas, neste caso a rodovia que corta o delta do rio jacuí desde 1950, como elementos dados de uma natureza urbana, passa a ser possível entender que os edifícios adjacentes a ela sejam análogos a substâncias intersticiais.
“As infraestruturas que se reforçavam e completavam mutuamente, estão a tornar-se cada vez mais competitivas e locais; já não pretendem criar conjuntos que funcionam, agora produzem entidades funcionais. Em vez de redes de organismos, a nova infraestrutura cria enclaves e impasses: não mais o grand récit, mas sim desvios parasitas… A infraestrutura já não é uma resposta mais ou menos retardada a uma necessidade mais ou menos urgente, mas antes uma arma estratégica, uma profecia: o porto X não se amplia para prestar serviços a um território interior de consumidores frenéticos, mas sim para eliminar/reduzir as hipóteses de sobrevivência do porto Y até ao século XXI.”
Em trecho de seu texto A Cidade Genérica (KOOLHAAS, 2014) Rem Koolhaas se refere a multiplicação de infraestruturas numa lógica competitiva. É simples, porém, transpor este discurso a uma lógica Latino Americana de escassez em que as infraestruturas permanecem as mesmas e ainda assim já não mais reproduzem um sistema de benesses, não por seu caráter funcional primordial, mas porque estão alheias as necessidades urgentes do mundo contemporâneo. De forma quase diametralmente oposta a ponte de raízes de Mawlynnong, na Índia (WATSON, 2019), a infraestrutura de mobilidade urbana de Porto Alegre, principalmente sobre o rio Guaíba, não corresponde a uma necessidade humana direta e é subalterna a lógica da cidade centrada no automóvel individual e do extrativismo enquanto projeto de governo. Tenciona-se no projeto o ato de fagocitar estas infraestruturas para dissuadi-las de seu caráter puramente sintético. É no intervalo entre as infraestruturas e a natureza que se da o espaço público.
Em paridade com o filme crimes of the future do diretor david cronenberg (2022), o projeto se propõe a criação de tecido fabricado a partir do mesmo material da infraestrutura corpórea pré-existente, o que chamamos de sedimentos do antropoceno é revisto nos plásticos de fachadas etc. No entanto aqui a hibridização da natureza dá lugar a hibridização do mundo artificial. No lugar do plástico “fóssil”, o plástico reciclado e então o bioplástico, numa progressão rumo a naturalização. A produção do espaço artificial, em consonância com o espaço natural, busca ressaltar as tensões entre as três ecologias (GUATARRI, 1989) de forma que haja coesão social rumo a um estado de Bem Viver e que o mundo material impacte nesta noção. Com a inserção de uma função fundamental para a comunidade local, diferente dos órgãos sobressalentes do filme de cronenberg, produzidos por meio da evolução de um mundo ‘biosintético’, mas ainda assim como manifestação estética, o dispositivo ambiental se coloca na discussão de como aterrar (LATOUR, 2017), entre o global e o local, e a eleva ao patamar físico imediato (entre natureza local e manifestações projetuais piloto de uma arquitetura global). Latour argumenta que:
“Não se trata mais de retomar ou de transformar um sistema de produção, mas de abandonar a produção como único princípio de relação com o mundo”
O projeto de arquitetura serve a este propósito enquanto manifestação cultural e estética. Ainda que não seja possível abandonar a produção, que ela seja proposta em um panorama comunal, respeitando os interesses de um imaginário ecológico que concilia a razão humana e a razão natural, na verdadeira simbiose possível.
ambientes naturais soterrados por sedimentos do antropoceno, como visto no documentário manufactured landscapes (2006) que retrata a china da rápida industrialização e de manifestações espaciais únicas oriundas do desenvolvimento econômico, dão lugar na américa latina a uma ocupação gradual dos espaços intermediários (entre natureza e cidade, regiões agrícolas e centros urbanos). nos cinturões verdes e nas áreas onde se manifesta a desindustrialização da maioria dos países do continente acumulam-se paulatinamente lixo, prédios sem uso, infraestrutura urbana subutilizada e flora ruderal, enquanto nas áreas de preservação e paradoxalmente de exploração extrativista as infraestruturas se atualizam enquanto a natureza, outrora intocada, perece diante da permissibilidade de governos neoliberais e progressista.
RESULTADOS
Através da observação e do exercício de conjectura acerca das possibilidades de uma arquitetura fundamentalmente simbiótica na resolução dos problemas socioambientais do delta do rio Jacuí emergem questões ainda mais profundas. A reciclagem enquanto metáfora de pensar mudanças para o mundo e como batalha concreta por uma nova organização dos seres vivos impulsiona a reflexão acerca das formas que moldaram o planeta. O conceito ameríndio de natureza em muitas cosmogonias difere do conceito ocidental, assim como seu conceito de humanidade ou cultura. “os ameríndios fazem parte daquela gigantesca minoria de povos que jamais foram modernos, porque jamais tiveram uma Natureza, e, portanto, jamais a perderam, nem tampouco precisaram de libertar dela” (DANOWSKI, CASTRO, 2017). Neste exercício de investigação se reconhece que para a sociedade ocidental contemporânea os conceitos de cultura e natureza se diferem entre si, no entanto este desequilíbrio parecer ser hoje maior do que nunca. Parece a arquitetura, enquanto semiótica da subjetivação (GUATTARI, 1989) é capaz de auxiliar na delimitação do par dialético natureza/cultura de cada grupo social.
Tendo traçado os objetivos de pesquisa em torno da questão de melhorias na relação entre sociedade e meio ambiente, a fim de simplificar a análise subdivide-se os resultados interpretados em quatro eixos principais entendidos como catalisadores do projeto, todos estes que permeiam questões ambientais e sociais. São estes: mobilidade; economia; reciclagem e bioplástico; espaços públicos e naturais.
Arquitectura simbiótica no rio Jacuí es un proyecto del IAAC, Instituto de Arquitectura Avanzada de Cataluña, desarrollado en la Maestría Online en Ciudades en 2021/2022 por el estudiante: Lucca Osellame, y Tutor: Ana Maria Duran